O fim de quem com [o meio] eça

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segunda-feira, março 17, 2008

Ao Cadáver

Nosso primeiro contato foi frio e impessoal. Seus olhos fixos fitavam minha inexperiência despindo-me da soberba própria da juventude, enquanto seu silencio rugia como esfinge em sussuro: “Desvenda-me ou te devoro!”. Com as mãos desajeitadas despi-lhe da carne pela primeira vez. Em seu rosto não havia dor, apenas a paciência de quem já viveu, mas guarda consigo uma última história pra contar. Ela não era triste, mas fazia-me chorar. Era severa, me exigia muita disciplina e atenção. Assim, aos poucos, aprendi a conviver com seu temperamento reservado e a respeitar-lhe o tempo de me revelar os segredos. Logo já o chamava pelo nome, e você me mostrava o que havia em seu coração, o que lhe dava frio na barriga ou mesmo o que fazia seus olhos brilharem... Por tudo isso lhe agradeço, sábio silencioso, agradeço-lhe a oportunidade de ter sido seu confidente, sua tabula rasa. Saiba que essa última história sua tornou-me capaz de ver além, de enxergar os caminhos da vida.

quarta-feira, março 12, 2008

Dama do lago

Sorrateira, ela veio na ponta dos pés... As gotas d´agua que escorriam-lhe pelos cabelos jamais tocaram o chão, vertiam agora dos olhos dele.

Estava imobilizado... Os olhos femininos revelavam o que os lábios traduziram em sorriso à medida que se aproximava... Ele sabia.

Silêncio... Apenas a respiração dele era ouvida... Ele ouvia.

Suave, ela passou a mão rosto daquele homem marcado e sentiu suas feridas sob os dedos. Doía...

Sua barriga gelava, parecia querer subir pela boca... Ele sentia...

Foi então que ela aproximou a boca de seu ouvido. Ele tremia...

A dama hesitou apenas para confortá-lo nos olhos:
“Não tenha medo... Eu não vou te machucar...” ela dizia...

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

Balanço com meia dose de Red e meia de Black

Outro dia tinha vinte anos, redondos e não poucos. Trabalhava num escritório com gente muito boa “mercadeando”, nem sempre em bom português. Usava uns cabelos cultivados, adubados com uma farta e algo objetiva criatividade. Trazia, no que eu viria a chamar de quarto quirodáctilo, um anelar direito vestindo uma banda de metal dourado na cintura. Ha! Eu tinha um monte de certezas! Todas elas deliciosamente cômodas e simples... Uma carcaça de frente empunhando um jesus prostrado à cruz pelos pulsos e um fosso vazio nas costas para drenar o que viesse depois. Antes da mãe perdi o filho deixando nu o dedo omisso de protesto. E o fosso encheu... Libertadores!!! Da garganta ao ventre veio o doutor e doutor não trabalha em escritório. Filho não vive sem mãe! Cadê o pai? - Nem sabe o que quer da vida e vai fazer vestibular? Vinte e poucos? – Vou sim! Acabaram o cabelo e as certezas, boto uns livros em cima da mesa e meu Jesus negro-branquinho há de me ajudar! Daqui a pouco chego nos trinta e finalmente começo a trabalhar. - Será que mãe vai juntar com o pai pro menino formar? – Eu peço calma, minha gente, calma pro menino estudar... Dá licença que eu vou ver um jogo pra desanuviar...

sábado, fevereiro 09, 2008

A Insustentável Leveza do Ser

por Milan Kundera

"Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo "esboço" não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro."

segunda-feira, janeiro 14, 2008

O Grande Farsante



















QUEM VEM LÁ?! Perguntou o soldado em meio ao nevoeiro e o estranho não tardou em responder: Sou o filho inconveniente que chora, a puta que não recebe, mas se diverte e o bobo que entretém os pares... Sou o doutor que ouve e não cura, o poeta que não escreve e sente, o que ama sem dar e pede... Sou o pastor que dá sua própria carne ao rebanho... Quem sou eu? Sou o monge recluso, o escrivão astuto e o preguiçoso que diz não saber ler! Eu sou o sábio obtuso, o oráculo escuso ou o vadio ignorante, o que queres que eu venha a ser? Ainda que eu te diga, me deixarás seguir adiante! Veja o que quiseres, veja... veja o grande farsante! Enxergar-me-ás ainda que por um instante? Confuso, o soldado tornou a perguntar: DIGA LOGO! QUEM VEM LÁ?! E o velho senhor com vestes em farrapos e costas encurvadas em trapos respondeu-lhe: “Sou apenas um pai a procura do filho, milorde... Rogo-lhe para que me deixe entrar para tentar a sorte...” E assim o pobre diabo, o velho itinerante passou perante a guarda. Nada nele dizia que se tratava, na verdade, de um tratante... de um grande farsante!

quarta-feira, outubro 31, 2007

Os mortos e todos os santos






















Os mortos têm bem me servido de companhia, vejamos o que todos os santos têm a me dizer amanhã de manhã...

Sobre a morte e o morrer

por Rubem Alves

O que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define?

Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora...

Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: "Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?". Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: "Não chore, que eu vou te abraçar..." Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.

Cecília Meireles sentia algo parecido: "E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias... Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto...”

Da. Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...”

Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.

Mas a medicina não entende. Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Era-lhe insuportável a visão do sofrimento do pai. Dirigiu-se, então, ao médico: "O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos, para que meu pai não sofra?". O médico olhou-o com olhar severo e disse: "O senhor está sugerindo que eu pratique a eutanásia?".

Há dores que fazem sentido, como as dores do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu velho pai morreu sofrendo uma dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu saiba, apenas a consciência apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver feito aquilo que o costume mandava; costume a que freqüentemente se dá o nome de ética.

Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama -de repente um acontecimento feliz! O coração parou. Ah, com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim punha um fim à sua miséria! Mas o médico, movido pelos automatismos costumeiros, apressou-se a cumprir seu dever: debruçou-se sobre o velhinho e o fez respirar de novo. Sofreu inutilmente por mais dois dias antes de tocar de novo o acorde final.

Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer que a "reverência pela vida" é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais?

Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.

Muitos dos chamados "recursos heróicos" para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da "reverência pela vida". Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: "Liberta-me".

Comovi-me com o drama do jovem francês Vincent Humbert, de 22 anos, há três anos cego, surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um acidente automobilístico. Comunicava-se por meio do único dedo que podia movimentar. E foi assim que escreveu um livro em que dizia: "Morri em 24 de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu não sei...". Implorava que lhe dessem o direito de morrer. Como as autoridades, movidas pelo costume e pelas leis, se recusassem, sua mãe realizou seu desejo. A morte o libertou do sofrimento.

Dizem as escrituras sagradas: "Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer". A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a "morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo.

(Enquanto o peso do teto não me deixa livre, vou tentando voltar escrevendo o texto dos outros...)

segunda-feira, junho 25, 2007

Pensamento do dia 2

"Bom não é ficar sem ter o que fazer; o divertido é estar cheio de obrigações e não fazer nada!" (Mary Little)